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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

ESTÉTICA em Morin


ESTÉTICA em Morin

Edgar Morin: O Método 5. A humanidade da humanidade: A identidade humana
Tradução de Juremir Machado da Silva
2ª.  Edição 2003. Páginas 132 a 141.

O estado estético

O estado estético é um transe de felicidade, de graça, de emoção, de gozo e de felicidade. A estética é concebida aqui não somente como uma característica própria das obras de arte, mas a partir do sentido original do termo, aisthètikos, de aisthanesthai, "sentir". Trata-se de uma emoção, uma sensação de beleza, de admiração, de verdade e, no paroxismo, de sublime; aparece não somente nos espetáculos ou nas artes, entre os quais, evidentemente, a música, o canto, a dança, mas também nos odores, perfumes, gostos dos alimentos ou das bebidas; origina-se no espetáculo da natureza, no encantamento diante do ocea­no, da montanha, do nascer do sol. Pode vir mesmo de obras sem qual­quer finalidade estética inicial, como os antigos moinhos de vento ou as antigas locomotivas a carvão. Também os objetos mais técnicos, como o automóvel e o avião, podem vir a ter forte carga estética.
A estética e o lúdico têm em comum o fato de serem a sua pró­pria finalidade, inclusive quando comportam finalidades utilitárias.
A estética e a despesa têm em comum o fato de levar a um transe, que pode se sobrepor a tudo.
A estética e o imaginário têm uma parte em comum: a estética alimenta o imaginário e é, em parte, alimentada por ele (epopéias, romances, poesias, esculturas, etc.).
A estética e a poesia vivida têm em comum o encantamento que podem provocar.
Admiramos a beleza das formas e das cores no mundo vivo, a das penas dos pássaros, às vezes suntuosas como no pavão, peles, ornamentos, como a galhada dos cervos. Certo, a concepção utilitarista tende a reduzir as cores dos galos a um papel de sedução sexual, as cores das asas das borboletas a distorções, as cores das orquídeas a convites para as abelhas; e a considerar que todo ganho decorativo gera uma vantagem seletiva. Mas um tal luxo, um tal caleidoscópio de cores, de decorações, não transborda as funções eficazes, seleti­vas, adaptativas? Não são inerentes à proliferação inventiva da vida? A magnificência destinada à atração sexual não implica também um excesso estético, destacado por Portmann como auto-apresentação? (Quando nos embelezamos para seduzir, o querer seduzir explica a utilização da beleza, não a própria beleza...) A estética humana pos­sui uma raiz profunda, anterior ao ser humano.
Pode-se até mesmo pensar que as figurações pré-históricas, as máscaras ditas primitivas, as pinturas com as quais os índios da Ama­zônia cobrem o corpo, as penas, ornamentos, brincos ou tatuagens dos primitivos, constituem desenvolvimentos tipicamente humanos, que necessitam de mãos de artistas e de artesãos, de uma qualidade estética universal oriunda da exuberância da vida, desabrochada nas florações vegetais, nas carapaças, plumagens, peles dos animais.
Nas sociedades arcaicas, ornamentos, músicas, cantos, dan­ças, acompanham todas as atividades da vida, exaltam as festas e as cerimônias. Se estas são inseparáveis de crenças e de mitos, não cabe reduzir suas manifestações estéticas a funções mágicas ou reli­giosas. Respondem também a um sentimento estético profundo, não decantado da magia, do mito, da religião. Podemos reconhecer as estéticas dos ornamentos, das máscaras, dos afrescos, tirando-os do contexto mágico-religioso.
Certo, os afrescos de Chauvet e de Lascaux devem ser com­preendidos em suas finalidades mágicas e os afrescos das capelas Scrovegni e Sistina, em suas finalidades religiosas. Mas por que gera­ções laicas sucessivasadmiram esteticamente, fora de qualquer fé, os afrescos pré-históricos e os de Giotto e de Michelângelo? Toda a arte rupestre, toda a arte mágica das culturas primitivas, máscaras, deco­rações, etc., todas as artes religiosas das grandes civilizações entra­ram no "Museu imaginário", ou seja, no domínio estético.
Se não se pode isolar a dimensão estética ao estado puro na pré-história e na história humana, não se pode tampouco eliminá-la. O pró­prio fato de que a dimensão estética se tenha autonomizado e diferencia­do nas civilizações modernas, em relação às finalidades mágicas, religiosas ou culturais, indica-nos que.estava presente, embora indiferenciada. Por isso, o mitológico ou mágico pode dar-nos a emoção estética quan­do deixamos de crer no mito e na magia. Não cremos mais literalmente nos mitos, mas aderimos esteticamente a eles.
A estética autônoma e diferenciada é também uma última emergência da cultura moderna que desabrocha se afastando das finalida­des mágico-religiosas.
Tudo o que é mitológico, mágico e religioso pode ser salva­guardado, fora da crença, na estética. Há uma grande comunicação oculta ou subterrânea entre a esfera mitológica e a esfera estética. Além disso, resta em nossa emoção estética alguma coisa de mágico. Tudo o que é representado, sob forma de imagem mental, pinta­da, filmada, comporta o "charme da imagem"; a imagem, mesmo sen­do desprovida da materialidade empírica, comporta uma qualidade nova própria a qualquer reflexo da realidade, uma transfiguração es­tética, uma virtude surrealizante, uma magia, a magia do duplo: a duplicação do universo em um universo reflexo nos dá, , com o "charme da imagem", um êxtase propriamente estético.
O mundo contemporâneo viu o desenvolvimento de um vasto setor estético feito para alimentar nosso psiquismo, nossas almas. O romance ganhou espaços consideráveis no século XIX, seguido, no século XX, pelo filme e pelas séries de televisão. A estética contem­porãnea cobre uma vasta gama, indo do mundo imaginário dos ro­mances e dos filmes aos espetáculos, festas, viagens turísticas para visitar monumentos e paisagens, comportando, além disso, mil pe­quenos prazeres da vida, mil pequenas satisfações gastronômicas e etílicas, mil pequenas gotas de divertimento no cotidiano moroso, ouvindo Risos e canções ou vetado as charges do Canard Enchainé.
Em reação à formidável invasão da racionalização técnica em nossa civilização, músicas, cantos, danças, resistem e menos voltam a nos invadir através do rádio, da televisão, das fitas, dos Cds, dos shows.
Nossa estética contemporânea alimenta-se, entre outros, de imaginário, lendas, epopéias, romances, filmes. Embora a gente ame, ria, sofra, ao mesmo tempo que nossos heróis imaginários, nossa cons­ciência de que continuamos leitores e espectadores permite a emoção pela estetização... Milagre da estética: a tragédia nos encanta na afli­ção mesma que nos proporciona.
Contudo, embora guardemos uma dupla consciência, tudo o que remete à estética penetra em nossas almas, em nossas mentes, em nossas vidas. (Romances, filmes, revelaram-me as minhas próprias verdades e apaixonaram o adolescente que fui).
Os filmes e as séries de televisão nos falam, sem parar, dos pro­blemas da vida que são os amores, ambições, ciúmes, traições, doen­ças, encontros, acasos. São "evasões” que nos fazem mergulhar em, nossas almas e em nossas existências. Os romances ou filmei noirs, como as tragédias antigas ou elisabetanas, fazem-nos descer aos nossos subterrâneos, nossas "cavernas interiores", onde reinam a violência e a barbárie, ou, então, dão um impulso imaginário a nossos desejos de aventura. O atroz em nossas vidas é transfigurado num filme e nos dá a volúpia ou o deslumbramento no horror. O impossível é realizado, mas no imaginário, ou seja, sem perigo. Encontramos no cinema, ao mesmo tempo, evasão e hiper-realidade. Revela, do seu jeito, que, como dizia Franz Liszt, "as artes são o meio mais seguro de se esconder do mundo, mas também o meio mais seguro de unir-se a ele".
Em todos esses casos, a estética, como o lúdico, retira-nos do esta­do prosaico, racional — utilitário, para nos colocar em transe, tanto em ressonância, empatia, harmonia, tanto em fervor, comunhão, exaltação. Coloca-nos em estado de graça, em que nosso ser e o mundo são mutua­mente transfigurados, que podemos chamar de estado poético.

O estado poético
Sem mudar de sintaxe e, com freqüência, mantendo o mesmo vocabulário, a linguagem comporta a possibilidade de exprimir esses dois estados da existência humana, o prosaico e o poético. Na lin­guagem poética, as palavras conotam mais do que denotam, evocam, transformam- se, em metáforas, impregnam-se de uma nova natureza evocativa, inovadora, encantatória. A prosa denota, precisa, define. Está ligada à nossa atividade racional – lógica – técnica.
Vivemos o estado prosaico, em situação utilitária e funcional, nas atividades destinadas à sobrevivência, a ganhar a vida, no traba­lho submetido, monótono, fragmentado, na ausência e no recalcamento da afetividade.
O estado poético é um estado de emoção, de afetividade, real­mente um estado de espírito. Alcançamos, a partir de um certo limite de intensidade na participação, a excitação, o prazer. Esse estado pode ser alcançado na relação com o outro, na relação comunitária, na relação imaginária ou estética.
A poesia é, para Platão, uma das quatro formas de loucura divina. Vive-se o estado poético como alegria, embriaguez, festa, gozo, volúpia, delícia, deslumbramento, fervor, fascínio, satisfação, encan­tamento, adoração, comunhão, entusiasmo, exaltação, êxtase. Volta-se ao deslumbramento infantil. O estado poético proporciona satisfa­ções carnais e espirituais.
O estado poético pode ser alcançado por diversos caminhos:
Há o caminho dos cantos, danças, festas, que se autonomizaram e tornaram-se laicos em nossas sociedades. O ritmo da música, a rei­teração da melodia ou da melopéia, o rito cerimonial e, no rock, o quase transe são modos de entrar em sintonia que levam ao estado poético. Os momentos maiores da vida, do nascimento à morte, são ritmados, cantados, dançados. As festas são  os momentos floridos da existência.
Há o caminho das bebidas fermentadas, vinhos, licores, ervas, dro­gas, alucinógenos: as drogas são freqüentemente utilizadas nas socieda­des arcaicas para atingir um estado de transe ou de meditação; com as mesmas finalidades, nossos contemporâneos as consomem cada vez mais.
Há o caminho dos rituais, cerimônias, cultos; pela fé e pelo rito, a religião constitui uma experiência poética de comunhão com o ser supremo ou com as potências cósmicas. O sentimento do sagrado, transe que transborda além da esfera religiosa, é um "elemento da estrutura da consciência" (Mircea Eliade) característico das mais for­tes emoções poéticas.
Há o caminho da relação estética com a natureza: a poesia chi­nesa, as Bucólicas e Geórgicas, de Virgílio, mil hinos ao sol e à lua, em todas as civilizações, foram manifestações disso; a partir de Rousseau e do romantismo, intensificou-se no mundo ocidental, realizando-se pela pintura, pela literatura, pela poesia, mas também diretamente nas via­gens de férias; democratizou-se no século XX, com as excursões e o turismo nos montes, nas florestas, nos oceanos, nos desertos.
Há o caminho dos espetáculos de massa que suscitam exaltação e frenesi, como os jogos circenses entre os romanos, e o hipódromo, entre os bizantinos; esses espetáculos comportam, hoje, as grandes competições esportivas e os grandes concertos públicos. Os shows de rock são festas comunitárias que suscitam entusiasmo e exaltação. Arrastados pelos ritmos e pelo frenesi das bandas, amplificado por um som ensurdecedor, um transe coletivo opera a sintonia entre as pessoas, a música e o universo.
Há o caminho dos jogos que, através doi diversos tipos estabe­lecidos por Caillois (âgon, alea, mimicry, ilinx), produzem um estado  poético próprio, inclusive nos jogos de vertigem que acarretam a per- da da estabilidade sensitiva, a atração irresistível do sem fundo, ou seja, do infinito.
Há o caminho das obras de arte, literatura, poesia, claro, pintu­ra, escultura, música. A música, especialmente, é, ao mesmo tempo, meio e fim que exprime e determina'o estado poético.
Enfim, a vida real da poesia é o amor. Um amor nascente inun­da o mundo de poesia; um amor que dura irriga de poesia a vida cotidiana; o fim de um amor nos devolve à prosa. O amor, unidade incandescente da sabedoria e da loucura, faz-nos suportar o destino, faz-nos amar a vida. O amor é a grande poesia no mundo prosaico moderno e alimenta-se de uma imensa poesia imaginária (romances, filmes, revistas).
A própria ciência tem a sua poesia. Lautréamont cantou a bele­za da matemática rigorosa. O cosmo, revelado pela astrofísica do firri do século XX, pertence à poesia e ao mistério.
Hõlderlin disse, com razão, que "o homem habita poeticamente a terra". Cabe~eÔmpletar: "O homem habita poética e prosaicamente a terra". As ciências humanas tê-m-,-ã- exceção de Huizinga, Bataille, Caillois, Axelos, Duvignaud`, ignorado uma dimensão antropológi­ca capital: o ser humano não vive só de pão, não vive só de mito, vive de poesia. Vive de música, de contemplações, de flores, de sorrisos.
O estado poético dá-nos o sentimento de superar os nossos própri­os limites, de sermos capazes de comungar com o que nos ultrapassa.
Purga a ansiedade, a preocupação, a mediocridade, a banalida­de. Transfigura o real. Estado transfigurados e transfigurado da exis­tência, é, certo, precário, aleatório, mas estado de graça.
Esse estado de graça foi definido como estado de entusiasmo e de possessão. Platão viu no entusiasmo uma presença divina no homem e para ele, como para nós, essa possessão divina é a melhor das coisas.
O estado poético atinge o ápice no êxtase.
O êxtase pode ser alcançado por todas as vias indicadas, o ritual, a possessão, o transe, a dança, a música, a fusão amorosa, os alucinó­genos (era mesmo preciso que um dia uma droga se chamasse ecstasy).
O êxtase é o máximo de realização de si e de superação de si, da fusão bem-sucedida de si com outro ou com o mundo, da felicidade da comunhão. É o paroxismo existencial, a realização extrema e a verdade suprema do estado poético.
Há um êxtase de consumição, de ruptura dos diques, de orgas­mo, em que todo o ser, alma e corpo, é possuído pelas forças ou pelos deuses que se abrigam nele. Há um êxtase de contemplação, na qual o sujeito se encontra ao perder-se, realiza-se afogando-se num infinito oceânico.
O êxtase é a experiência máxima que encontra fim em si mes­ma e ganha valor supremo: é o apogeu da festa, o ápice da mística, o cume do amor.
O amor dá-nos o êxtase psíquico e ô êxtase físico; o êxtase psíquico parte da contemplação, da admiração e leva à adoração; o êxtase físico, orgasmo, faz jorrar, entrar em fusão, extravasar em nossas existências as energias profundas do cosmo. O amor é a religião do individualismo moderno" porque une – em nós – os dois êxtases, formas supremas da experiência poética, ao mesmo tempo as mais universais e as mais comuns.
Os dois seres que coexistem em nós, o do estado prosaico e o do estado poético, são o mesmo. Prosa e poesia são complementares, antagônicas em yin n yang e podem conter-se uma na outra. A dominância da prosa contém instantes poéticos; a dominância da po­esia contém instantes prosaicos.
Nas sociedades arcaicas, havia forte alternância entre uma vida cotidiana frugal, parcimoniosa, submetida às normas e interdições, e a vida de festa, caracterizada pela anulação dos limites e dos tabus, pelas danças, orgias, embriaguez, excessos, desperdícios, exaltações, verdadeiras despesas. E se o sentido da festa, recorrendo ao caos genésico,  era de regenerar o ciclo dos dias, o sentido de ciclo estava na preparação e na exaltação da festa".
A civilização ocidental contemporânea mais ou menos suplan­tou a alternância vida cotidiana/festa com a alternância trabalho/lazer. O lazer remete a iniciativas individuais, à busca da alegria (noites com amigos, bebedeiras, arruaças, bailes), à busca de poesia vivida
(férias, turismo, jogos e, sobretudo, amores) ou por procuração (fil­mes, estrelas). Contudo, o trabalho pode comportar poesia ou mesmo viraria quando se trata de uma atividade rica em iniciativa, em criatividade, em participação afetiva, como a do artesão, do artista, do advogado, do parlamentar.
O interesse mercantil compreendeu bem e utilizou a necessida­de de poesia. O universo lúdico – estético – poético foi absorvido pela economia do espetáculo – esportes, concertos, cinema, televisão.
A prosa da nossa civilização, o primado do econômico, a inva­são do tempo cronometrado em detrimento do tempo natural, o aumento da pressão das cadeias tecnoburocráticas sobre um mundo fragmentado, compartimentado, atomizado, monetarizado e, recentemen­te, o desabamento das grandes esperanças poéticas de mudar de vida, seguido pela explosão discursiva da prosa do liberalismo econômico triunfante (será morto por sua prosa), tudo isso estimula, por efeito contrário, as resistências poéticas na sociedade civil, com, cada vez mais, a necessidade de aventuras, de música por meio de aparelhos de rádio, fitas, Cds, shows, bailes, festas, raves, detonação. É, segundo a expressão de Michel Maffesoli, o retorno de Didnisos.  Quanto mais a prosa invade a vida, mais a poesia reage.
O estado poético não pode ser considerado como um epifenômeno, uma superestrutura, um divertimento da verdadeira vida humana. É, ao contrário, o estado pelo qual nos sentimos na "verda­deira vida". Rimbaud exprimiu a consciência de que, no mundo da prosa, "a verdadeira vida está ausente". Realmente, a verdadeira vida é poética. Viver poeticamente é viver por viver, e viver por viver é viver poeticamente. A poesia não é somente nem principalmente viver de gozo, mas ela nos faz ter acesso ao gozo de viver. Enquanto o estado prosaico  tem sempre finalidades exteriores, o estado poético, que pode estar ligado a finalidades religiosas, comunitárias, amoro­sas, é, ao mesmo tempo, sempre o seu próprio fim. A finalidade da poesia é ela mesma: fazer com que o transe proporcionado se torne realidade.
A vida poética está irrigada em profundidade pelo pensamento analógico – simbólico – mitológico. O amor, emergência suprema de poesia, vive de símbolos, cria o seu mito e a sua magia. Novalis dizia que a poesia é a religião nascida da humanidade. Digamos que é a sua religião secreta, invisível, permanente.
Tudo se comunica entre imaginário, jogo, estética, despesa, poesia. Assim, a festa reúne a consumição, o jogo e a estética na embriaguez, na confraternização, na música, na dança e, dessa for­ma, transfigura a vida.
A poesia comporta, certo, perigos para a pessoa e para a comu­nidade. A consumição roça a autodestruição. O amor é uma aventura que contém o risco da ilusão e da mentira e que pode degradar-se em intoxicação e terminar tragicamente. O jogo obsessivo torna-se addiction, mania fatal, assim como o uso obsessivo de drogas ou de alucinógenos. O avaro acha poesia no seu ouro (Harpagão: "Meu ouro, meu rico ouro"). Os frenesis podem conduzir ao crime. As exaltações comunitárias, étnicas, nacionais ou religiosas, alimentam as violências fanáticas. Ludens e consumans  podem transformar-se em demens.
Por outro lado, a perda de todo o fundamento do pensamento e do mundo, próprios do niilismo contemporâneo, levou a uma estranha inversão: a utilidade foi invadida pela estética, o sério foi tomado pelo jogo, "atividade sem outro sentido, que não o seu próprio, livre da servidão do fim", segundo a expressão de Frobenius. A ação revolucio­nária e a guerra tornaram-se, para aventureiros, grandes jogos nos quais se joga a vida.
Honro complexos
Se o homo é, ao mesmo tempo, sapiens e demens, afetivo, lúdico, imaginário, poético, prosaico, se é um animal histérico, possuído por seus sonhos e, contudo, capaz de objetividade, de cálculo, de racionalidade, é por ser homo complexus`.
    Assim, se há realmente homo sapiens, economicus, prosaicus, há também, e é o mesmo, o homem do delírio, do jogo, da despesa, da estética, do imaginário, da poesia. A bipolaridade sapiens-demens exprime ao extremo a bipolaridade existencial das duas vidas que te­cem as nossas vidas, urna série, utilitária, prosaica, a outra lúdica, estética, poética. A brecha entre o real e o espírito humano é, inces­santemente, atravessada seja por redes de racionalidade que estabele­cem a comunicação, seja invadida pelas potências afetivas ou fantasmáticas que penetram o real e confundem-se com ele.
O ser humano é bipolarizado entre demens e sapiens. Mais ainda, sapiens está em demens e demens está em sapiens, ens, em yin yang, um contendo o outro. Entre ambos, antagônicos e complemen­tares, não existe fronteira nítida; há, sobretudo, eflorescências da afetividade, da estética, da poesia, do mito. Uma vida totalmente racio­nal, técnica e utilitária seria não apenas demente, mas inconcebível. Uma vida sem nenhuma racionalidade seria impossível. É a racionalidade que permite objetivar o mundo exterior e operar uma relação cognitiva prática e técnica.
O ser humano não vive só de racionalidade e de instrumentos; gasta-se, dá-se, entrega-se nas danças, transes, mitos, magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício; viveu o suficiente para preparar a sua outra vida, além da morte... As atividades do jogo, de festa, de rito, não são simples distrações para se recuperar com vistas à vida prática ou do trabalho; as crenças em deuses e nas idéias não podem ser redu­zidas a ilusões ou superstições: têm raízes que mergulham nas profundezas humanas. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a afetividade, a magia, o imaginário, o mito, a religião, o jogo, a despesa, a estética, a poesia; é o paradoxo da riqueza, da prodigalidade, da infelicidade, da felicidade do homo sapiens-demens.
Através da trilogia do espírito, da afetividade, do anel que liga e opõe racionalidade, afetividade, imaginário, mito, estética, lúdico, des­pesa, o ser humano vive sua vida de alternância de prosa e de poesia, em que a privação de poesia é tão fatal quanto a privação de pão.

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