ESTÉTICA em Morin
Edgar Morin: O Método 5. A humanidade da humanidade: A
identidade humana
Tradução de Juremir Machado da Silva
2ª. Edição 2003.
Páginas 132 a 141.
O estado estético
O estado estético é um transe de
felicidade, de graça, de emoção, de gozo e de felicidade. A estética é
concebida aqui não somente como uma característica própria das obras de arte,
mas a partir do sentido original do termo, aisthètikos, de aisthanesthai,
"sentir". Trata-se de uma emoção, uma sensação de beleza, de
admiração, de verdade e, no paroxismo, de sublime; aparece não somente nos
espetáculos ou nas artes, entre os quais, evidentemente, a música, o canto, a
dança, mas também nos odores, perfumes, gostos dos alimentos ou das bebidas;
origina-se no espetáculo da natureza, no encantamento diante do oceano, da
montanha, do nascer do sol. Pode vir mesmo de obras sem qualquer finalidade
estética inicial, como os antigos moinhos de vento ou as antigas locomotivas a
carvão. Também os objetos mais técnicos, como o automóvel e o avião, podem vir
a ter forte carga estética.
A estética e o lúdico têm em
comum o fato de serem a sua própria finalidade, inclusive quando comportam
finalidades utilitárias.
A estética e a despesa têm em
comum o fato de levar a um transe, que pode se sobrepor a tudo.
A estética e o imaginário têm uma
parte em comum: a estética alimenta o imaginário e é, em parte, alimentada por
ele (epopéias, romances, poesias, esculturas, etc.).
A estética e a poesia vivida têm
em comum o encantamento que podem provocar.
Admiramos a beleza das formas e
das cores no mundo vivo, a das penas dos pássaros, às vezes suntuosas como no
pavão, peles, ornamentos, como a galhada dos cervos. Certo, a concepção
utilitarista tende a reduzir as cores dos galos a um papel de sedução sexual,
as cores das asas das borboletas a distorções, as cores das orquídeas a
convites para as abelhas; e a considerar que todo ganho decorativo gera uma
vantagem seletiva. Mas um tal luxo, um tal caleidoscópio de cores, de
decorações, não transborda as funções eficazes, seletivas, adaptativas? Não
são inerentes à proliferação inventiva da vida? A magnificência destinada à
atração sexual não implica também um excesso estético, destacado por Portmann
como auto-apresentação? (Quando nos embelezamos para seduzir, o querer seduzir
explica a utilização da beleza, não a própria beleza...) A estética humana possui
uma raiz profunda, anterior ao ser humano.
Pode-se até mesmo pensar que as
figurações pré-históricas, as máscaras ditas primitivas, as pinturas com as quais
os índios da Amazônia cobrem o corpo, as penas, ornamentos, brincos ou
tatuagens dos primitivos, constituem desenvolvimentos tipicamente humanos, que
necessitam de mãos de artistas e de artesãos, de uma qualidade estética
universal oriunda da exuberância da vida, desabrochada nas florações vegetais,
nas carapaças, plumagens, peles dos animais.
Nas sociedades arcaicas,
ornamentos, músicas, cantos, danças, acompanham todas as atividades da vida,
exaltam as festas e as cerimônias. Se estas são inseparáveis de crenças e de
mitos, não cabe reduzir suas manifestações estéticas a funções mágicas ou religiosas.
Respondem também a um sentimento estético profundo, não decantado da magia, do
mito, da religião. Podemos reconhecer as estéticas dos ornamentos, das máscaras,
dos afrescos, tirando-os do contexto mágico-religioso.
Certo, os afrescos de Chauvet e
de Lascaux devem ser compreendidos em suas finalidades mágicas e os afrescos
das capelas Scrovegni e Sistina, em suas finalidades religiosas. Mas por que
gerações laicas sucessivasadmiram esteticamente, fora de qualquer fé, os
afrescos pré-históricos e os de Giotto e de Michelângelo? Toda a arte rupestre,
toda a arte mágica das culturas primitivas, máscaras, decorações, etc., todas
as artes religiosas das grandes civilizações entraram no "Museu
imaginário", ou seja, no domínio estético.
Se não se pode isolar a dimensão
estética ao estado puro na pré-história e na história humana, não se pode
tampouco eliminá-la. O próprio fato de que a dimensão estética se tenha
autonomizado e diferenciado nas civilizações modernas, em relação às
finalidades mágicas, religiosas ou culturais, indica-nos que.estava presente,
embora indiferenciada. Por isso, o mitológico ou mágico pode dar-nos a emoção
estética quando deixamos de crer no mito e na magia. Não cremos mais
literalmente nos mitos, mas aderimos esteticamente a eles.
A estética autônoma e diferenciada
é também uma última emergência da cultura moderna que desabrocha se afastando
das finalidades mágico-religiosas.
Tudo o que é mitológico, mágico e
religioso pode ser salvaguardado, fora da crença, na estética. Há uma grande
comunicação oculta ou subterrânea entre a esfera mitológica e a esfera
estética. Além disso, resta em nossa emoção estética alguma coisa de mágico. Tudo
o que é representado, sob forma de imagem mental, pintada, filmada, comporta o
"charme da imagem"; a imagem, mesmo sendo desprovida da
materialidade empírica, comporta uma qualidade nova própria a qualquer reflexo
da realidade, uma transfiguração estética, uma virtude surrealizante,
uma magia, a magia do duplo: a duplicação do universo em um universo reflexo
nos dá, , com o "charme da imagem", um êxtase propriamente estético.
O mundo contemporâneo viu o
desenvolvimento de um vasto setor estético feito para alimentar nosso
psiquismo, nossas almas. O romance ganhou espaços consideráveis no século XIX,
seguido, no século XX, pelo filme e pelas séries de televisão. A estética
contemporãnea cobre uma vasta gama, indo do mundo imaginário dos romances e dos
filmes aos espetáculos, festas, viagens turísticas para visitar monumentos e
paisagens, comportando, além disso, mil pequenos prazeres da vida, mil
pequenas satisfações gastronômicas e etílicas, mil pequenas gotas de
divertimento no cotidiano moroso, ouvindo Risos e canções ou vetado as
charges do Canard Enchainé.
Em reação à formidável invasão da
racionalização técnica em nossa civilização, músicas, cantos, danças, resistem
e menos voltam a nos invadir através do rádio, da televisão, das fitas, dos Cds,
dos shows.
Nossa estética contemporânea
alimenta-se, entre outros, de imaginário, lendas, epopéias, romances, filmes.
Embora a gente ame, ria, sofra, ao mesmo tempo que nossos heróis imaginários,
nossa consciência de que continuamos leitores e espectadores permite a emoção
pela estetização... Milagre da estética: a tragédia nos encanta na aflição
mesma que nos proporciona.
Contudo, embora guardemos uma
dupla consciência, tudo o que remete à estética penetra em nossas almas, em
nossas mentes, em nossas vidas. (Romances, filmes, revelaram-me as minhas
próprias verdades e apaixonaram o adolescente que fui).
Os filmes e as séries de
televisão nos falam, sem parar, dos problemas da vida que são os amores,
ambições, ciúmes, traições, doenças, encontros, acasos. São "evasões” que
nos fazem mergulhar em, nossas almas e em nossas existências. Os romances ou
filmei noirs, como as tragédias antigas ou elisabetanas, fazem-nos
descer aos nossos subterrâneos, nossas "cavernas interiores", onde
reinam a violência e a barbárie, ou, então, dão um impulso imaginário a nossos
desejos de aventura. O atroz em nossas vidas é transfigurado num filme e nos dá
a volúpia ou o deslumbramento no horror. O impossível é realizado, mas no
imaginário, ou seja, sem perigo. Encontramos no cinema, ao mesmo tempo, evasão
e hiper-realidade. Revela, do seu jeito, que, como dizia Franz Liszt, "as
artes são o meio mais seguro de se esconder do mundo, mas também o meio mais
seguro de unir-se a ele".
Em todos esses casos, a estética,
como o lúdico, retira-nos do estado prosaico, racional — utilitário, para nos
colocar em transe, tanto em ressonância, empatia, harmonia, tanto em fervor,
comunhão, exaltação. Coloca-nos em estado de graça, em que nosso ser e o mundo
são mutuamente transfigurados, que podemos chamar de estado poético.
O estado poético
Sem mudar de sintaxe e, com
freqüência, mantendo o mesmo vocabulário, a linguagem comporta a possibilidade
de exprimir esses dois estados da existência humana, o prosaico e o poético. Na
linguagem poética, as palavras conotam mais do que denotam, evocam,
transformam- se, em metáforas, impregnam-se de uma nova natureza evocativa,
inovadora, encantatória. A prosa denota, precisa, define. Está ligada à nossa
atividade racional – lógica – técnica.
Vivemos o estado prosaico, em
situação utilitária e funcional, nas atividades destinadas à sobrevivência, a
ganhar a vida, no trabalho submetido, monótono, fragmentado, na ausência e no
recalcamento da afetividade.
O estado poético é um estado de
emoção, de afetividade, realmente um estado de espírito. Alcançamos, a partir
de um certo limite de intensidade na participação, a excitação, o prazer. Esse
estado pode ser alcançado na relação com o outro, na relação comunitária, na
relação imaginária ou estética.
A poesia é, para Platão, uma das
quatro formas de loucura divina. Vive-se o estado poético como alegria,
embriaguez, festa, gozo, volúpia, delícia, deslumbramento, fervor, fascínio,
satisfação, encantamento, adoração, comunhão, entusiasmo, exaltação, êxtase. Volta-se
ao deslumbramento infantil. O estado poético proporciona satisfações carnais e
espirituais.
O estado poético pode ser
alcançado por diversos caminhos:
Há o caminho dos cantos, danças,
festas, que se autonomizaram e tornaram-se laicos em nossas sociedades. O ritmo
da música, a reiteração da melodia ou da melopéia, o rito cerimonial e, no
rock, o quase transe são modos de entrar em sintonia que levam ao estado
poético. Os momentos maiores da vida, do nascimento à morte, são ritmados,
cantados, dançados. As festas são os
momentos floridos da existência.
Há o caminho das bebidas
fermentadas, vinhos, licores, ervas, drogas, alucinógenos: as drogas são
freqüentemente utilizadas nas sociedades arcaicas para atingir um estado de
transe ou de meditação; com as mesmas finalidades, nossos contemporâneos as
consomem cada vez mais.
Há o caminho dos rituais,
cerimônias, cultos; pela fé e pelo rito, a religião constitui uma experiência
poética de comunhão com o ser supremo ou com as potências cósmicas. O sentimento
do sagrado, transe que transborda além da esfera religiosa, é um "elemento
da estrutura da consciência" (Mircea Eliade) característico das mais fortes
emoções poéticas.
Há o caminho da relação estética
com a natureza: a poesia chinesa, as Bucólicas e Geórgicas, de
Virgílio, mil hinos ao sol e à lua, em todas as civilizações, foram
manifestações disso; a partir de Rousseau e do romantismo, intensificou-se no
mundo ocidental, realizando-se pela pintura, pela literatura, pela poesia, mas
também diretamente nas viagens de férias; democratizou-se no século XX, com as
excursões e o turismo nos montes, nas florestas, nos oceanos, nos desertos.
Há o caminho dos espetáculos de
massa que suscitam exaltação e frenesi, como os jogos circenses entre os
romanos, e o hipódromo, entre os bizantinos; esses espetáculos comportam, hoje,
as grandes competições esportivas e os grandes concertos públicos. Os shows de
rock são festas comunitárias que suscitam entusiasmo e exaltação. Arrastados
pelos ritmos e pelo frenesi das bandas, amplificado por um som ensurdecedor, um
transe coletivo opera a sintonia entre as pessoas, a música e o universo.
Há o caminho dos jogos que,
através doi diversos tipos estabelecidos por Caillois (âgon, alea, mimicry,
ilinx), produzem um estado poético
próprio, inclusive nos jogos de vertigem que acarretam a per- da da
estabilidade sensitiva, a atração irresistível do sem fundo, ou seja, do
infinito.
Há o caminho das obras de arte,
literatura, poesia, claro, pintura, escultura, música. A música,
especialmente, é, ao mesmo tempo, meio e fim que exprime e determina'o estado
poético.
Enfim, a vida real da poesia é o
amor. Um amor nascente inunda o mundo de poesia; um amor que dura irriga de
poesia a vida cotidiana; o fim de um amor nos devolve à prosa. O amor, unidade
incandescente da sabedoria e da loucura, faz-nos suportar o destino, faz-nos
amar a vida. O amor é a grande poesia no mundo prosaico moderno e alimenta-se
de uma imensa poesia imaginária (romances, filmes, revistas).
A própria ciência tem a sua
poesia. Lautréamont cantou a beleza da matemática rigorosa. O cosmo, revelado
pela astrofísica do firri do século XX, pertence à poesia e ao mistério.
Hõlderlin disse, com razão, que
"o homem habita poeticamente a terra". Cabe~eÔmpletar: "O homem
habita poética e prosaicamente a terra". As ciências humanas tê-m-,-ã-
exceção de Huizinga, Bataille, Caillois, Axelos, Duvignaud`, ignorado uma
dimensão antropológica capital: o ser humano não vive só de pão, não vive só
de mito, vive de poesia. Vive de música, de contemplações, de flores, de
sorrisos.
O estado poético dá-nos o
sentimento de superar os nossos próprios limites, de sermos capazes de
comungar com o que nos ultrapassa.
Purga a ansiedade, a preocupação,
a mediocridade, a banalidade. Transfigura o real. Estado transfigurados e
transfigurado da existência, é, certo, precário, aleatório, mas estado de
graça.
Esse estado de graça foi definido
como estado de entusiasmo e de possessão. Platão viu no entusiasmo uma presença
divina no homem e para ele, como para nós, essa possessão divina é a melhor das
coisas.
O estado poético atinge o ápice no êxtase.
O êxtase pode ser alcançado por todas as vias indicadas, o ritual, a
possessão, o transe, a dança, a música, a fusão amorosa, os alucinógenos (era
mesmo preciso que um dia uma droga se chamasse ecstasy).
O êxtase é o máximo de realização
de si e de superação de si, da fusão bem-sucedida de si com outro ou com o
mundo, da felicidade da comunhão. É o paroxismo existencial, a realização
extrema e a verdade suprema do estado poético.
Há um êxtase de consumição, de
ruptura dos diques, de orgasmo, em que todo o ser, alma e corpo, é possuído
pelas forças ou pelos deuses que se abrigam nele. Há um êxtase de contemplação,
na qual o sujeito se encontra ao perder-se, realiza-se afogando-se num infinito
oceânico.
O êxtase é a experiência máxima
que encontra fim em si mesma e ganha valor supremo: é o apogeu da festa, o
ápice da mística, o cume do amor.
O amor dá-nos o êxtase psíquico e
ô êxtase físico; o êxtase psíquico parte da contemplação, da admiração e leva à
adoração; o êxtase físico, orgasmo, faz jorrar, entrar em fusão, extravasar em
nossas existências as energias profundas do cosmo. O amor é a religião do
individualismo moderno" porque une – em nós – os dois êxtases, formas
supremas da experiência poética, ao mesmo tempo as mais universais e as mais
comuns.
Os dois seres que coexistem em
nós, o do estado prosaico e o do estado poético, são o mesmo. Prosa e poesia
são complementares, antagônicas em yin n yang e podem conter-se uma na outra. A
dominância da prosa contém instantes poéticos; a dominância da poesia contém
instantes prosaicos.
Nas sociedades arcaicas, havia
forte alternância entre uma vida cotidiana frugal, parcimoniosa, submetida às
normas e interdições, e a vida de festa, caracterizada pela anulação dos
limites e dos tabus, pelas danças, orgias, embriaguez, excessos, desperdícios,
exaltações, verdadeiras despesas. E se o sentido da festa, recorrendo ao caos
genésico, era de regenerar o ciclo dos
dias, o sentido de ciclo estava na preparação e na exaltação da festa".
A civilização ocidental
contemporânea mais ou menos suplantou a alternância vida cotidiana/festa com a
alternância trabalho/lazer. O lazer remete a iniciativas individuais, à busca
da alegria (noites com amigos, bebedeiras, arruaças, bailes), à busca de poesia
vivida
(férias, turismo, jogos e,
sobretudo, amores) ou por procuração (filmes, estrelas). Contudo, o trabalho
pode comportar poesia ou mesmo viraria quando se trata de uma atividade rica em
iniciativa, em criatividade, em participação afetiva, como a do artesão, do
artista, do advogado, do parlamentar.
O interesse mercantil compreendeu
bem e utilizou a necessidade de poesia. O universo lúdico – estético – poético
foi absorvido pela economia do espetáculo – esportes, concertos, cinema,
televisão.
A prosa da nossa civilização, o
primado do econômico, a invasão do tempo cronometrado em detrimento do tempo
natural, o aumento da pressão das cadeias tecnoburocráticas sobre um mundo fragmentado,
compartimentado, atomizado, monetarizado e, recentemente, o desabamento das
grandes esperanças poéticas de mudar de vida, seguido pela explosão discursiva
da prosa do liberalismo econômico triunfante (será morto por sua prosa), tudo
isso estimula, por efeito contrário, as resistências poéticas na sociedade
civil, com, cada vez mais, a necessidade de aventuras, de música por meio de
aparelhos de rádio, fitas, Cds, shows, bailes, festas, raves, detonação. É,
segundo a expressão de Michel Maffesoli, o retorno de Didnisos. Quanto mais a prosa invade a vida, mais a
poesia reage.
O estado poético não pode ser
considerado como um epifenômeno, uma superestrutura, um divertimento da
verdadeira vida humana. É, ao contrário, o estado pelo qual nos sentimos na
"verdadeira vida". Rimbaud exprimiu a consciência de que, no mundo
da prosa, "a verdadeira vida está ausente". Realmente, a verdadeira
vida é poética. Viver poeticamente é viver por viver, e viver por viver é viver
poeticamente. A poesia não é somente nem principalmente viver de gozo, mas ela
nos faz ter acesso ao gozo de viver. Enquanto o estado prosaico tem sempre finalidades exteriores, o estado
poético, que pode estar ligado a finalidades religiosas, comunitárias, amorosas,
é, ao mesmo tempo, sempre o seu próprio fim. A finalidade da poesia é ela
mesma: fazer com que o transe proporcionado se torne realidade.
A vida poética está irrigada em
profundidade pelo pensamento analógico – simbólico – mitológico. O amor,
emergência suprema de poesia, vive de símbolos, cria o seu mito e a sua magia.
Novalis dizia que a poesia é a religião nascida da humanidade. Digamos que é a
sua religião secreta, invisível, permanente.
Tudo se comunica entre
imaginário, jogo, estética, despesa, poesia. Assim, a festa reúne a consumição,
o jogo e a estética na embriaguez, na confraternização, na música, na dança e,
dessa forma, transfigura a vida.
A poesia comporta, certo, perigos
para a pessoa e para a comunidade. A consumição roça a autodestruição. O amor
é uma aventura que contém o risco da ilusão e da mentira e que pode degradar-se
em intoxicação e terminar tragicamente. O jogo obsessivo torna-se addiction,
mania fatal, assim como o uso obsessivo de drogas ou de alucinógenos. O avaro
acha poesia no seu ouro (Harpagão: "Meu ouro, meu rico ouro"). Os
frenesis podem conduzir ao crime. As exaltações comunitárias, étnicas,
nacionais ou religiosas, alimentam as violências fanáticas. Ludens e consumans
podem transformar-se em demens.
Por outro lado, a perda de todo o
fundamento do pensamento e do mundo, próprios do niilismo contemporâneo, levou
a uma estranha inversão: a utilidade foi invadida pela estética, o sério foi
tomado pelo jogo, "atividade sem outro sentido, que não o seu próprio,
livre da servidão do fim", segundo a expressão de Frobenius. A ação
revolucionária e a guerra tornaram-se, para aventureiros, grandes jogos nos
quais se joga a vida.
Honro complexos
Se o homo é, ao mesmo tempo, sapiens
e demens, afetivo, lúdico, imaginário, poético, prosaico, se é um animal
histérico, possuído por seus sonhos e, contudo, capaz de objetividade, de
cálculo, de racionalidade, é por ser homo complexus`.
Assim, se há realmente homo sapiens,
economicus, prosaicus, há também, e é o mesmo, o homem do delírio, do jogo,
da despesa, da estética, do imaginário, da poesia. A bipolaridade
sapiens-demens exprime ao extremo a bipolaridade existencial das duas vidas que
tecem as nossas vidas, urna série, utilitária, prosaica, a outra lúdica,
estética, poética. A brecha entre o real e o espírito humano é, incessantemente,
atravessada seja por redes de racionalidade que estabelecem a comunicação,
seja invadida pelas potências afetivas ou fantasmáticas que penetram o real e
confundem-se com ele.
O ser humano é bipolarizado entre
demens e sapiens. Mais ainda, sapiens está em demens e demens está em sapiens,
ens, em yin yang, um contendo o outro. Entre ambos, antagônicos e complementares,
não existe fronteira nítida; há, sobretudo, eflorescências da afetividade, da
estética, da poesia, do mito. Uma vida totalmente racional, técnica e
utilitária seria não apenas demente, mas inconcebível. Uma vida sem nenhuma
racionalidade seria impossível. É a racionalidade que permite objetivar o mundo
exterior e operar uma relação cognitiva prática e técnica.
O ser humano não vive só de
racionalidade e de instrumentos; gasta-se, dá-se, entrega-se nas danças,
transes, mitos, magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício; viveu o
suficiente para preparar a sua outra vida, além da morte... As atividades do
jogo, de festa, de rito, não são simples distrações para se recuperar com
vistas à vida prática ou do trabalho; as crenças em deuses e nas idéias não
podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: têm raízes que mergulham nas
profundezas humanas. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a
afetividade, a magia, o imaginário, o mito, a religião, o jogo, a despesa, a
estética, a poesia; é o paradoxo da riqueza, da prodigalidade, da infelicidade,
da felicidade do homo sapiens-demens.
Através da trilogia do espírito,
da afetividade, do anel que liga e opõe racionalidade, afetividade, imaginário,
mito, estética, lúdico, despesa, o ser humano vive sua vida de alternância de
prosa e de poesia, em que a privação de poesia é tão fatal quanto a privação de
pão.
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